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Joias do Louvre roubadas: um escândalo que revela a contradição da França com o passado

26/10/2025 08:01 O Globo - Rio/Política RJ

Parece coisa de filme, foi o que todo mundo disse. Mas teria que ser um filme muito mequetrefe, sem lasers, sem sensores de temperatura, sem a elegância de um Lupin ou de Onze homens e um segredo. Porque um bom filme de roubo tem engenhosidade e coreografia. O do Louvre teve apenas falhas, e em abundância. Um pastelão. Difícil acreditar que, no museu mais famoso do mundo, tantas camadas de História tenham sido atravessadas com a facilidade de quem simplesmente pula uma catraca.
Para a França, berço da Declaração dos Direitos do Homem e da revolução que decapitou reis em nome da igualdade, o passado monárquico sempre foi um incômodo mal resolvido. Nada ilustra melhor essa ambiguidade do que a relação turbulenta e negligente com as joias da Coroa, uma coleção que, desde o século XVI, funcionava como uma cápsula do tempo reunida por sucessivos soberanos, atravessando batalhas, casamentos, leilões e exílios.
O primeiro grande roubo ocorreu em 1792, durante a Revolução, no antigo guarda-móveis real. Quase toda a coleção foi saqueada: dois terços acabaram recuperados, mas um terço se perdeu para sempre. No século XIX, Napoleão Bonaparte e, depois, seu sobrinho Napoleão III tentaram devolver às joias o brilho que a Revolução havia dispersado. Em 1887, porém, a Terceira República, temendo qualquer nostalgia monárquica, decidiu vender o que restava das joias. Foi um gesto político e, ao mesmo tempo, um desastre histórico e financeiro. Montagens foram destruídas, coroas desmontadas e toneladas de pedras lançadas no mercado a preço de liquidação. A França perdeu não apenas um tesouro simbólico, mas também milhões em valor real, num dos leilões mais desastrados da História.
Ao longo do século XX, o Louvre buscou recompor sua coleção de joias preciosas como pôde: foi um trabalho paciente, sustentado por doações, leilões e a generosidade de colecionadores. Apesar de tanto esforço, não deixa de ser espantoso o contraste com outros grandes acervos do mundo.
As joias dos Romanov, por exemplo, repousam em cofres do Kremlin, sob vigilância de soldados fortemente armados. As dos xás da Pérsia estão guardadas no banco de Teerã, com fotos terminantemente proibidas. Já as pedras da monarquia britânica brilham sob olhares atentos de guardas e a mítica proteção dos corvos na Torre de Londres. Enquanto isso, as joias da França permaneciam quase nuas, ao alcance de milhões de visitantes, no mafuá que virou o hipervisitado Louvre.
Mas o que mais impressiona é a rapidez com que muitos despacharam o episódio, como se se tratasse apenas de pedras. Só pedras? As pedras nunca são apenas pedras. Elas são o eco mineral do tempo, matéria que atravessa milênios até cair, lapidada, na palma humana. São fragmentos de eternidade, vestígios tangíveis daquilo que sobrevive a nós. Quando um soberano as usa, não é apenas vaidade, é a tentativa de tocar o tempo e fazê-lo brilhar.
E não se roubaram apenas os vestígios de um passado glamouroso. Também se apagaram, junto com eles, as contradições que essas gemas carregam — uma herança de origem incômoda, em que minas inteiras nas antigas colônias foram drenadas para enriquecer o invasor. Quando essas joias desaparecem, desaparece também a lembrança das mãos que as arrancaram da terra, o peso invisível das injustiças que nelas cintilavam.
É impossível não lembrar de quando o nosso Museu Nacional ardeu em chamas, levando consigo séculos e séculos de tesouros arqueológicos que pertenciam ao povo brasileiro depois de terem feito parte das coleções imperiais. Não foram cacarecos nem pedrinhas que viraram pó, mas a nossa dignidade como guardiões do passado e, sobretudo, como intermediários do futuro.
Quando um museu é roubado, o que se perde não é apenas um acervo. É o brilho da alma de um povo: sua cultura e identidade.

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