Vivi para contar: 'Todas as diretrizes da maternidade foram reescritas em 20 anos'
Tenho uma filha adulta, de 20 anos, uma adolescente, de 16, e outra bebê, de 1 ano. Digo isso com orgulho. Mãe é assim. Tem orgulho só — como se fosse pouco — de ser mãe. E quanto mais a maternidade parece desafiadora, mais a gente estufa o peito. E que seja desafiadora, não há quem duvide. Por serem três, por haver um intervalo tão grande entre elas e porque criar um filho hoje é como tentar atualizar o sistema enquanto o software ainda está rodando — e a cada nova versão o manual muda.
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Para além do susto de uma nova maternidade aos 47 anos, outros sustos se sucedem. Eu, que achava que já dominava o ofício, que havia superado tantos desafios, criado duas filhas saudáveis e bem-sucedidas. Diziam que agora eu tiraria de letra. Mas as surpresas não param. Agora entendo as avós que, ao verem mães de primeira viagem aflitas e cheias de regras absolutas, torcem o nariz, pensam e muitas vezes dizem: “Criei de outro jeito e tá aí!”.
Há 20 anos, nasceu — três meses depois do Orkut — minha primeira filha. Criei praticamente sem telas até os 2 anos de idade. Foi natural. Não se falava nisso na época, nem era preciso. Eu levava ao parque diariamente, estimulava com tinta, massinha, livros, fantoches. A TV já era por assinatura, mas tínhamos horários para os desenhos. E ela via sempre supervisionada.
Três anos e oito meses depois, veio a segunda. Entrou no mesmo ritmo, mas já com mais fotos no Orkut. Víamos vídeos no YouTube. Eu procurava a velha coleção Disquinho, que embalou minha infância com histórias contadas, mas agora com ilustrações, sem movimento, que elas adoravam. Nessa época, Galinha Pintadinha e Xuxa Só para Baixinhos não tinham hora marcada: tínhamos os DVDs. Ainda assim, eu seguia a cartilha do momento, ouvia o pediatra, lia blogs e, principalmente, tinha minha rede de mães com filhos na mesma idade. A mais velha já estava na escola.
O celular, que ela ganhou (de segunda mão, quando troquei o meu) aos 10 anos, a mais nova já manuseava aos 8. Antes disso, ganharam tablets, em que brincavam com joguinhos sem acesso à internet. Os parâmetros para estabelecer esses marcos éramos nós mesmas, as “mães amigas” do grupo do WhatsApp. Tentávamos nos ajudar, alertar para os perigos. Fazíamos as mesmas perguntas e, na maioria das vezes, nós mesmas respondíamos, porque ninguém tinha vivido ainda esses dilemas.
Ao longo desses anos, o WhatsApp virou ferramenta de ajuda e também o pesadelo das mães. Descobrimos, umas com as outras, que havia aplicativos “escondidos” sob ícones de fachada, o jogo da Baleia Azul, mensagens, fotos e vídeos inapropriados que chegavam às mãos dos nossos filhos, fotos e vídeos inapropriados de filhos — de alguém — expostos diante de todos.
As redes sociais e as contas dix revelaram filhos que desconhecíamos — com suas bandeiras, discursos, brincadeiras. Eles também estavam se descobrindo. Minhas filhas cresciam, e as descobertas da adolescência — que na minha geração vivíamos com discrição, nos bastidores —, de alguma forma agora deixavam rastros digitais.
Elas correram riscos — mais do que eu imaginava, porque sempre trabalhei muito e não conseguia monitorar, como começaram a dizer que era preciso. Enfrentei esse dilema: dei o celular, mas precisava supervisionar. Só que há um mundo inteiro na internet a vigiar — e tecnologias que elas já dominavam melhor do que eu.
Não me entenda mal: nunca fui uma mãe ausente. Mas estar presente, percebi, passou a exigir login, senha e atualização de sistema.
Pais — principalmente as mães, sejamos honestos! — corriam contra o tempo para acompanhar as evoluções tecnológicas. Mas, para cada drible nosso, eram duas a três canetas dos filhos. Eu quis, muitas vezes, parar o jogo, pedir o VAR para decidir o que fazer. Mas a vida não dá intervalo. No meu desespero de mãe, desejei algumas vezes o fim da internet, virei aquela conservadora que diz que tudo era melhor no seu tempo. Até que decidi mudar de tática.
Quis entender, estudei a adolescência, pesquisei os influenciadores que inspiravam minhas filhas, rasguei a velha cartilha, me atualizei. Criei um blog sobre adolescência no jornal EXTRA, entrevistei dezenas de profissionais que trabalham com esse público. Ufa — funcionou! Me aproximei delas.
E então, 20 anos depois, nasceu a terceira. A tecnologia já não é uma novidade: é o ar que respiramos. A primeira infância dela passa em meio a telas de alta definição, playlists de ninar e algoritmos que me informam a cada semana como está o desenvolvimento da pequena.
Em 20 e 16 anos, absolutamente tudo mudou. Todas as diretrizes do desenvolvimento infantil foram reescritas.
O quartinho do bebê era sagrado: “Vamos acostumá-lo a dormir sozinho”, diziam; cama compartilhada, jamais — risco de vida! Agora, o quarto compartilhado é o ideal até 1 ano. Nada de deixar o bebê sozinho — para minha sorte, que ainda nem tinha um quarto pronto para ela. A cama compartilhada, antes condenada, agora
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