
Vivi para contar: 'Foi uma doença contraída por causa da ganância’, diz filho de homem contaminado por HIV durante transplante
Quando aceitou fazer o transplante, João Silva (nome fictício) vislumbrou a esperança de ter uma vida mais longa e saudável. Mas nada saiu como sonhava. Passou por internações que os médicos não conseguiam explicar os motivos até vir à tona que ele havia recebido um órgão infectado por HIV, algo inédito no país. O filho do paciente contou ao GLOBO como a vida da família mudou após esse episódio:
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“Meu pai foi internado no fim de 2023 com um problema cardíaco. O médico nos procurou e explicou a situação: ‘Seus exames estão estáveis, tirando esse problema no coração. Com um transplante, temos a opção de dar a ele uma qualidade de vida melhor’. E foi o que escolhemos. O que não sabíamos é que nosso conto de fadas se transformaria em descrença.
A cirurgia dele foi excepcional. Feita em seis horas, quase sem sangramento, e pouco tempo depois ele já tinha sido extubado, algo que os médicos disseram ser único. Foi uma felicidade absurda naquele momento. Assim que pudemos, o colocamos em uma videochamada com o restante da família — estava muito brincalhão e feliz que iria voltar para casa. Mas, a partir dali, começaram todos os problemas.
A busca pelo diagnóstico
Ele ficou internado por mais oito meses. Nesse tempo meu pai chegou a ficar com os leucócitos quase zerados (glóbulos brancos que defendem o corpo contra infecções). Os médicos achavam que era uma reação à medicação para evitar a rejeição do coração.
Os remédios não surtiam o efeito desejado, mesmo as medicações mais caras. Meu pai começou paralelamente a perder muito peso, começou a ficar apático como nunca tínhamos visto. A gente pensava que poderia ser um problema de compatibilidade do coração.
Ainda sem saber o que acontecia de verdade, meu pai voltou para casa até por recomendação médica, para estar cercado de amigos e da família. Marcamos uma consulta com um médico para estudar o caso dele. Só que, para nossa sorte, erramos a data e fomos ao consultório um mês antes. A médica já nos conhecia e nos atendeu assim mesmo, para a gente não perder a viagem. Quando ela começou a conferir os exames e a examiná-lo, viu que meu pai estava com muitas manchas vermelhas pelo corpo, parecendo dermatite. Ela desconfiou de herpes zoster e o internou de novo.
Mais uma vez nos enchemos de preocupação e voltamos a um hospital. Lá, um infectologista descartou herpes e começou a desconfiar que fosse o HIV. E testou. Lembro que meu pai me ligou dizendo que daria uma notícia que mudaria a vida dele, mas não por telefone. Fui até lá e ele, desolado, me contou.
Achava que não era possível. Todos os exames feitos antes do transplante negavam isso. Os médicos ficaram igualmente surpresos e acharam primeiro que poderia ter sido uma transfusão de sangue na cirurgia. Só que meu pai não precisou. Depois nos chamaram numa consulta e, em 6 de setembro do ano passado, nos contaram que ele tinha sido contaminado pelo coração infectado.
O médico foi bem claro com a gente: precisaríamos nos preparar para uma redução da expectativa de vida dele. Não há protocolos para tratar esses casos porque nunca tinha acontecido uma infecção por HIV em um transplante no Brasil. Os tratamentos são na base de tentativa e erro. Esse ano ele ficou internado novamente por sequelas do vírus e com apenas 20% de chance de sobreviver. Até hoje a infecção não foi totalmente controlada.
Um segredo na família
Meu pai, que era ativo e trabalhador, se tornou uma pessoa apática. Desde a cirurgia, definhou: perdeu 20 quilos e tem depressão. Até hoje muitos da nossa família não sabem do que aconteceu. E tenho uma sensação de impotência muito grande ao vê-lo desse jeito. Nossa vida se tornou ir a médicos e hospitais.
Não sabíamos o tamanho do escândalo até lermos as primeiras notícias nos jornais há um ano. Ali nosso mundo caiu porque descobrimos que foi uma doença contraída por causa da ganância humana, para economizar em testes de laboratório. Tudo isso poderia ter sido evitado. Esses pacientes simplesmente entraram numa fila de transplante atrás de esperança e receberam uma condenação.
O que eu mais quero é ver meu pai longe de hospitais. Mas hoje estamos focados em criar memórias afetivas e estar bem juntos, para deixá-lo vivo eternamente na gente.
E buscamos justiça. Espero que todos os responsáveis sejam punidos pelo que fizeram. E espero que haja uma conscientização de que isso não pode mais acontecer. O SUS é o maior sistema de saúde do mundo, e não podemos perder a crença nele. Mas, para isso acontecer, é preciso ter um efeito pedagógico para todo o Brasil.”
*Filho de paciente em depoimento a Felipe Grinberg
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