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Que jogo é esse: Como psicologia e neurociência explicam o erro do juiz e do VAR em São Paulo x Palmeiras

11/10/2025 10:01 O Globo - Rio/Política RJ

A CBF divulgou nesta semana o áudio do VAR de São Paulo x Palmeiras, polêmico jogo de domingo. Mais do que um registro técnico, o que se ouviu foi um retrato de como as convicções se formam — e de como o erro pode ser coletivo, não individual. No lance em questão, o são-paulino Tapia é atingido pelo palmeirense Allan dentro da área. Antes mesmo de qualquer checagem, o árbitro Ramon Abatti Abel reage: “Escorregou, escorregou!”. No VAR, todos os três juízes, inclusive o principal, Ilbert Estevam, confirmam: “É justamente isso que você narra”. A cena é simples e cheia de erros. O juiz define a narrativa antes da revisão; o VAR revisa para confirmar, não para entender. O que parece apenas um tropeço técnico, falta de preparo, pode se revelar como algo mais profundo: um reflexo humano.
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Assista: CBF divulga áudios do VAR de lances polêmicos em São Paulo x Palmeiras
Entre jogadores, na arquibancada, nas mesas de debate após o jogo e de bar durante a semana, o erro dos juízes e a convicção do pênalti chegava perto da unanimidade. Essa dicotomia me chamou a atenção: como quatro árbitros concordaram tão rápido em algo que o resto do mundo via de forma diferente com tanta certeza? Foi aí que resolvi investigar além das regras do jogo.
Conversei com especialistas em psicologia e neurociência, estudei o assunto para entender se o fenômeno era só desconhecimento da regra ou se poderia haver algo mais acontecendo.
Porque ali, dentro da cabine e do campo, não falhou apenas o conhecimento do jogo: falhou o funcionamento natural do cérebro, da mente social e do instinto de autoproteção. A ação dos árbitros no lance de Tapia e Allan é o espelho perfeito de como julgamos o mundo sob pressão: influenciados pela primeira impressão, pelo desejo de concordar e pelo medo de contrariar. Um pênalti ignorado, portanto, pode também ser um estudo de caso sobre como pensamos.
A psicologia da conformidade
O que pode ter acontecido na cabine do VAR, segundo um psicólogo de um clube de futebol que não quis se identificar, é o mesmo que acontece em qualquer grupo humano: a força da concordância. Em 1951, o psicólogo Solomon Asch, da Universidade de Swarthmore, conduziu um experimento que se tornou um clássico da psicologia social. Ele reuniu voluntários para uma tarefa simples: identificar, entre três linhas, qual tinha o mesmo comprimento de uma linha-modelo. O truque estava em que quase todos os participantes eram atores instruídos a errar. O resultado: três em cada quatro pessoas reais também erravam, apenas para não destoar do grupo.
Esse comportamento é conhecido como conformidade social. No VAR, ele ganha uma versão profissional: a voz do árbitro de campo tem peso simbólico e hierárquico. Discordar dele é desafiá-lo diante das câmeras, dos clubes e da CBF. E, como mostram outros estudos psicológicos da década seguinte, figuras de autoridade tendem a inibir o senso crítico. Assim, quando Ramon, apontado dentro e fora do grupo como um dos melhores da profissão no Brasil, afirma com convicção o que viu, os revisores, mesmo diante das imagens, se comportam como os participantes de Asch: preferem errar em grupo a causar conflito. O desejo de coesão vence o de precisão.
A neurociência do erro
É que os árbitros de vídeo não viram apenas o lance na tela, em câmera lenta: viram o que esperavam ver, não importa o ângulo. A neurociência explica isso pelo fenômeno da ancoragem cognitiva: o impulso automático de fixar uma interpretação inicial e depois usá-la como referência, mesmo diante de novas evidências. O psicólogo Daniel Kahneman, especialista em analisar julgamentos e tomadas de decisões, Prêmio Nobel de Economia e autor de "Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar", descreve o processo em dois modos: um “Sistema 1”, rápido, intuitivo e emocional, e um “Sistema 2”, lento, racional e analítico. No futebol, o Sistema 1 muitas vezes apita primeiro. Quando Ramon diz “escorregou”, ele não está apenas descrevendo o lance — está moldando a percepção dos que o escutam.
Uma vez emitida essa "âncora", o cérebro dos colegas do VAR tende a buscar provas que confirmem a versão inicial. É o que a neurociência chama de viés de confirmação. Discutir, rever ou discordar exige ativar o modo analítico, o tal Sistema 2, que consome mais energia e tempo. Por isso, sob pressão da decisão rápida, o caminho mais fácil (e inconsciente) é seguir a primeira impressão. O árbitro do replay, preso ao áudio do campo, passa a enxergar o lance com o mesmo filtro: o da narrativa pronta. O erro se torna previsível, quase inevitável.
Comportamento de rebanho
No futebol, o VAR é apresentado como a instância máxima de checagem mas, na prática, também é um ambiente de risco. A economia comportamental, área que uniu psicologia e economia nas pesquisas do já citado Daniel Kahneman e Richard Thaler (outro Prêmio Nobel), mostra que as pessoas tendem a escolher o caminho

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