
Medo, pesadelos e aumento de agressividade: crianças e escolas do RS ainda lidam com o trauma das enchentes
Alana da Silva Kaiper, de 6 anos, ainda sofre de pesadelos por causa das enchentes de maio de 2024
Anna Ortega/g1
“Quando eu acordei, coloquei o pé no chão, e tinha água. Achei que tava no rio”, lembra Alana da Silva Kaiper, de 6 anos, sobre o dia em que a enchente invadiu sua casa na Ilha das Flores, em Porto Alegre, no começo de maio de 2024. Cerca de quinze meses depois, a menina ainda tem pesadelos: “Sonho que a enchente e os bichos estão no forro e vão cair em mim”.
Rosimere Rocha da Silva, de 41 anos, conta que a filha Alana e seu outro filho, Jaisson, de 8 anos, ainda têm pânico quando começa a chover. No caso de Jaisson, a tragédia climática teve efeitos ainda mais graves e desencadeou uma crise que tem sido investigada.
A família teve de ser resgatada quando a água estava quase no telhado e precisou ficar dias numa barraca na beira da BR 116. Nesse tempo, o menino ficou agressivo, mordia outras pessoas e comia a própria roupa. Segundo a mãe, há suspeita de autismo e esquizofrenia. “Quando fala de enchente perto dele, ele fica pior. Porque ele já sabe que vai ficar sem casa”, diz Rosimere, que já teve que se mudar muitas vezes por causa das cheias – não só a histórica, de maio de 24, como outras que vieram depois.
Rosimere Rocha da Silva na frente da casa que ela perdeu depois das enchentes de maio de 2024 na Ilha das Flores, em Porto Alegre
Anna Ortega/g1
Para as crianças, a perda da casa, dos brinquedos e também da rotina escolar tiveram impactos profundos. “A nossa casa ficou meses debaixo d’água, os brinquedos da Alana apodreceram. Até hoje ela vai até lá e pede pra eu limpar e resgatar as bonecas, mas não tem condições. Tá tudo podre”, conta Rosimere.
Caixas com brinquedos apodrecidos ainda estão na frente da casa de Rosimere; sua filha Alana ainda pede que a mãe 'resgate' as bonecas que apodreceram
Anna Ortega/g1
🔎As cheias de maio de 2024 foram o maior desastre natural na história do Rio Grande do Sul. Foram mais de 2 milhões de pessoas afetadas em 478 municípios, com mais de 180 mortes. As águas baixaram, mas deixaram marcas profundas. No final de agosto, o g1 visitou escolas públicas em Porto Alegre e Eldorado do Sul, na região metropolitana, para entender como as enchentes afetaram as crianças pequenas e as escolas. Nesta reportagem, você vai ler:
Os impactos da tragédia para a saúde mental das crianças de 0 a 6 anos
As consequências do fechamento de escolas por meses
O que as escolas fizeram para cuidar dos pequenos e se recuperar
A necessidade de planos para enfrentamento das emergências climáticas
Trauma das águas
O g1 conversou com mais de 15 adultos e crianças para a produção dessa reportagem. Entre os adultos, praticamente todos ainda se emocionam e choram ao contar o que viveram. “O trauma é coletivo”, conta Sabrina Garcez, diretora da Emei Miguel Granato Velasquez, de Porto Alegre. “Se a gente está abalado de lembrar, imagina as crianças pequenas.”
Julia Andara Pires, de 6 anos, tem uma imagem forte marcada na memória: “A enchente veio do bueiro”. Moradora de um condomínio do Sarandi, em Porto Alegre, a família de Julia conseguiu sair dali logo que a água começou a subir pelo esgoto. O apartamento, no terceiro andar, não encheu de água, mas tudo estragou e mofou em razão da água que ficou parada por mais de um mês nos andares mais baixos.
Julia Andara Pires, de 6 anos, lembra que a água invadiu o condomínio onde mora pelo bueiro, e que a família teve que sair às pressas durante a enchente de 2024
Anna Ortega/g1
Como era impossível entrar em casa, Julia foi levada para a casa dos avós, em Tramandaí, enquanto os pais tentavam salvar as coisas em Porto Alegre. “Ela ficou um tempo longe da gente, e 3 meses sem escola. Foi difícil, mesmo ligando todo dia, ela sentiu muito”, conta Nátali Andara de Andrade, mãe da menina. Nátali lembra que antes era bom dormir com barulho de chuva. “Agora, se chove, ninguém dorme direito.”
As crianças ainda se lembram da constante troca de casa durante a tragédia. Joaquim Rosa, de 6 anos, diz que teve de se mudar duas vezes. Primeiro, sua casa foi alagada, depois a "nova casa" para onde se mudaram também foi alagada, e por fim, ele e sua mãe foram para outro lugar. “Eu fico triste porque perdi meus gokus [bonecos] e meus Hot Wheels [carrinhos]”, conta ele sobre os brinquedos preferidos.
Joaquim, de 6 anos, lamenta a perda dos brinquedos
Anna Ortega/g1
A moradora de Eldorado do Sul Caroline Trapp lembra da dificuldade de blindar o filho Rafael, então com 4 anos, do ambiente de angústia que tomou conta de todos durante a enchente.
"Eu chorava de desespero. Vi animais morrendo afogados na minha frente, minha loja de ferragens enchendo de água, era noite e não tinha luz. Minha mãe cadeirante, a gente não sabia como sair de casa. Era um cenário de pânico mesmo. E o Rafael ficou muito agitado, ficava andando de um lado pro outro, tremendo", lembra Caroline.
Moradora de Eldorado do Sul, Caroline Trapp teve a casa devastada pelas enchentes de
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