Bússola do cérebro? Estudo registra pela primeira vez como os morcegos se orientam na natureza
A navegação perfeita de morcegos selvagens acaba de revelar um segredo guardado pela evolução: uma bússola cerebral, capaz de guiar mamíferos pelo mundo real com precisão surpreendente. Pela primeira vez, pesquisadores registraram a atividade neural desses animais durante o voo em plena natureza — e descobriram que o cérebro deles se orienta globalmente, independente de estrelas, lua ou campo magnético da Terra.
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O estudo — liderado pelo professor Nachum Ulanovsky e publicado, em outubro, na revista Science — teve como cenário a remota Ilha de Latham, um pedaço de terra rochoso do tamanho de sete campos de futebol, a 40 quilômetros da costa da Tanzânia. Ali, morcegos-da-fruta receberam minúsculos dispositivos desenvolvidos especialmente para monitorar neurônios individuais enquanto exploravam livremente o território.
Expedição científica à prova de tempestades
A ideia surgiu em 2018, quando Nachum Ulanovsky iniciou uma busca internacional por um local que permitisse estudar navegação de mamíferos fora do laboratório. A ilha africana se tornou o cenário perfeito: isolada, sem árvores altas e com fácil recaptura dos animais. “Noite após noite, eu movia meu cursor pelo Google Earth até encontrar Latham”, contou o pesquisador.
A missão científica levou acampamento, antenas de satélite e todo um laboratório portátil de Israel até a Tanzânia. Mas o experimento quase foi frustrado pelo ciclone Freddy, que atrasou os primeiros voos dos seis morcegos estudados durante a temporada de 2023. Uma segunda expedição, em 2024, correu sob clima mais ameno.
Em cada saída noturna, os sensores instalaram na memória científica registros inéditos: mais de 400 neurônios profundos do cérebro disparavam conforme a direção do voo. Quando o morcego apontava o corpo para o norte, por exemplo, um conjunto específico de neurônios ativava a rota. O sinal se mantinha fiel em qualquer ponto da ilha, mesmo com mudanças de altitude, velocidade ou terreno. “Descobrimos que a bússola é global e uniforme: o norte permanece norte”, explicou Ulanovsky.
Ao contrário do que ocorre em aves migratórias, o mecanismo não depende do campo magnético terrestre. Na verdade, há um longo aprendizado até que o cérebro estabilize essa orientação — algo incompatível com magnetismo, mas coerente com um sistema baseado em referências do ambiente. Penhascos, rochas e a própria topografia de Latham podem ser os marcos visuais usados pelos animais.
Os pesquisadores também testaram a influência dos corpos celestes. O resultado: a bússola neural funcionou com a mesma precisão com ou sem lua e estrelas visíveis. “A Lua e as estrelas não são essenciais”, diz o cientista. Ainda assim, ele acredita que pistas celestes podem acelerar o aprendizado inicial ao oferecer uma espécie de “verdade absoluta” para calibrar o sistema.
Essas chamadas células de orientação da cabeça existem em várias espécies, incluindo humanos, e são fundamentais para a sobrevivência. Compreender seus mecanismos pode ajudar a avançar no conhecimento sobre distúrbios que afetam a memória espacial, como o Alzheimer. A pesquisa envolveu também Shaked Palgi, Dr. Saikat Ray, Dr. Shir Maimon, além de colaboradores na Tanzânia e Alemanha, e foi financiada por centros de pesquisa em neurociência como o Centro Zuckerman e a Cátedra Barbara e Morris L. Levinson.
Ao demonstrar que o mundo real é crucial para revelar processos cerebrais, Ulanovsky espera que outros laboratórios arrisquem expedições semelhantes. “Não há substituto para testar o conhecimento do laboratório na natureza”, resume.
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