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Quando o cassetete bastava

24/10/2025 20:48 A Tarde - Política

Você não vai me desmentir, não ser que more fora do planeta. Mas faz tempo em que o medo mudou de lado. Diga se você, minha leitora, não tem o tempo todo a sensação de estar vivendo dentro de um filme diatópico, desses em que o bem aparece acuado, e o mal, organizado, faz até conferências de imprensa? A violência chegou a tal ponto que os bandidos, em plena luz do dia, falam abertamente em eliminar quem é do lado do bem, quem os combate — e não por vingança, mas como estratégia. Querem espalhar o terror, desarticular o Estado, calar quem ainda acredita ou cumpre a lei. O medo virou ferramenta de poder.Antigamente, bastava uma dupla de PMs, conhecidos carinhosamente como Cosme e Damião, para garantir a ordem de um bairro inteiro na Bahia. Eles patrulhavam de boné, farda engomada e cassetete pendendo do lado — e isso era suficiente. Não se ouvia falar em confronto. Bastava o estalar do coturno na esquina para que o silêncio caísse como uma cortina. O respeito, mesmo sem armas, era o escudo da autoridade.Hoje, nem o fuzil mete medo. A polícia, que um dia representou o limite entre o caos e a civilização, virou alvo declarado. E o que antes era vergonha — ver um policial chegar numa casa — agora é comum. As pessoas se acostumam. E ser policial não é mais motivo de orgulho é puro risco. O policial, por falta de outras condições, mora perto do bandido. Passa por ele quando sai a serviço. A sociedade parece ter se acostumado à barbárie como quem se acostuma à chuva fina. Cada nova execução, cada ataque, cada emboscada entra na rotina, como se fosse parte da paisagem urbana. O Estado corre atrás do prejuízo, mas o crime corre na frente, com tática, planejamento e comunicação própria. Mata delegado, investigador, PM, mata geral.O medo, que antes se sentia ao fazer o errado, hoje é o preço de quem tenta fazer o certo. E o que antes era vergonha agora virou coragem.No tempo do cassetete, bastava um olhar severo para conter um tumulto. Hoje, com metralhadoras e coletes à prova de tudo, o tumulto é o normal. E nós, espectadores dessa distopia real, seguimos torcendo para que um dia o simples barulho do coturno volte a significar ordem — e não alvo. Jolivaldo Freitas é jornalista e escritor

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