
O bife que merece anistia
Fica aqui do ladinho do jornal, numa das ruas menos instagramáveis do Centro. Barato, barulhento e invariavelmente cheio, o Galeto 183 é comandado por uma senhora de vestidos elegantes, voz fina e firme, e opinião formada sobre absolutamente tudo — da quantidade ideal de alho no tempero ao destino da nação.
No salão, fotos simpáticas de fregueses dividem espaço com imagens de político fazendo “arminha”, adesivos de “que saudade do meu ex” e uma bandeira do Brasil esticada desde o dia em que Lula foi preso. Até pouco tempo, o cliente pagava a conta no balcão sob o olhar atento da dona e de um pequeno busto de Jair Bolsonaro. Na parede, pendurado ao lado dos prêmios que o restaurante já recebeu, um calendário de 2024 é ilustrado com a foto oficial do ex-presidente e de uma sorridente imagem de Dona Ana.
Na parede, pendurado ao lado dos prêmios que o Galeto 183 já recebeu, há um calendário de 2024 é ilustrado com a foto oficial de Jair Bolsonaro e outra de Dona Ana
Thales Machado
Apesar do nome oficial, é assim mesmo que o lugar é conhecido: "Dona Ana". É que a proprietária está no centro de tudo ali: uma portuguesa de sorriso largo e gentileza de avó, que vende almoço como quem oferece abraço. É capaz de perguntar da família, lembrar o ponto da carne e o prato favorito de cada freguês e servir tudo, na medida exata do afeto.
Ao mesmo tempo, é também uma militante fervorosa da direita radical, que distribui opiniões impublicáveis e notícias duvidosas com a mesma leveza com que serve o arroz soltinho. Doce na ação, um pouco azeda nas convicções — uma senhora que apoia, com a ternura de quem passa um café (grátis ao fim das refeições), os atos mais amargos que o país viveu nos últimos anos.
É essa personalidade polarizada que traz, fumegante, o arremedo de união. Porque, quando chega o contra-filé, dourado, suculento, quase uma declaração de paz, tudo o que nos separa parece, por um instante, se dissolver no molho. E se a anistia, como se discute por aí, fosse mesmo plausível, que começasse por ali: pelo bife que une o país, pelo menos nas fronteiras da Rua de Santana.
O bifão da Dona Ana, do Galeto 183, na Rua de Santana
Thales Machado
O restaurante vive lotado e segue simples, democrático na clientela e apertado no espaço e na ideologia. Ali se misturam meus coleguinhas de jornal, policiais de plantão, gringos do TripAdvisor e, mais recentemente, jovens curiosos do TikTok, que chegam em busca do “galeto raiz” e saem convertidos ao feijão. Nos comentários, há quem pregue o boicote pelo posicionamento político da dona. Mas há também quem apoie e quem confesse, rendido, que não existe polarização que resista ao seu famoso “bifão”.
Faz pouco tempo, levei lá um dos meus amigos mais lulistas, que começou o almoço em estado de urticária moral por estar num “restaurante bolsonarista”. Bastou o primeiro garfo: comeu, repetiu e, desde então, quer o bis. Eis o espantoso encanto de Dona Ana: da CLT ao Partido, capaz de soltar impropérios contra tudo que leve ‘dos trabalhadores’ no nome ou no espírito, mas mantém há anos seus antigos empregados, trata todos com um respeito tão raro quanto sua consciência de classe. Recentemente, seguiu pagando normalmente o salário de um garçom afastado por doença grave.
Dona Ana também é capaz de aceitar as diferenças. Ao gosto do cliente, liberdade gastronômica é um pilar: troca arroz branco por brócolis, fritas por portuguesa, e aceita até o sacrilégio do bife bem passado. É o tipo de generosidade que lembra que cada um pode ser o que quiser: meu estômago, minhas regras. Mas basta sair da cozinha e entrar no Facebook para o feijão desandar. Em um período eleitoral, Dona Ana já postou um texto pedindo que clientes que apoiassem um candidato de esquerda não voltassem mais ao restaurante (ninguém obedeceu). Noutra época, me jurou de pé junto, via zap, que Emmanuel Macron, o presidente da França, fora travesti na adolescência.
É uma figura curiosa, peculiar: na teoria, é contra o “pessoal dos direitos humanos”; na prática, muito humana, ajuda a alimentar os muitos moradores de rua que vivem ali pelos arredores. Um misto de caridade cristã e radicalismo digital — capaz de confundir até o algoritmo do Criador.
Não confunda o seu: o feijão, o contra-filé, o filé-mignon, o strogonoff das quartas, o cozido das quintas, a maionese, o frango atropelado, as fritas crocantes e a torradinha com alho que faz aliança política perfeita com o molho à campanha. Este colunista recomenda tudo isso com a convicção de quem apertaria 183 na urna eletrônica, auditada, para votar no melhor braseiro da cidade.
Já Dona Ana, portuguesa, não tem direito a voto no Brasil. Nunca pôde cravar o 17 nem o 22 — dizem que o 13 ela não digita de jeito nenhum, passa a régua na conta em R$ 12,99. Também quase não come carne, prefere algo mais leve. É dessas pessoas que fazem tudo movidas por paixões inexplicáveis — e talvez seja por isso que é tão radical no que se propõe: se na política a dedicação pode esturricar
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