
Em Belém, Círio de Nazaré reúne 2,5 milhões entre o Sagrado e o Profano: 'O evento não tem dono, é do povo'
“Égua! Quem tem pecado fica no meio para não pesar muito dos lados e virar o barco”, brincou uma mulher na proa do Costa Filho, embarcação tipicamente amazônica que levava 120 pessoas pelo Círio Fluvial, a tradicional romaria marítima que acontece na véspera do Círio de Nazaré, em Belém, no Pará. “Ih, gente, então, vou ter que ir lá para trás...”, disse a cantora e compositora Linn da Quebrada, respondendo à provocação, antes de soltar uma sonora gargalhada.
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A cena ilustra bem a o clima de uma das maiores celebrações religiosas do Brasil, que reuniu 2,5 milhões de pessoas ontem, e há tempos deixou de ser uma manifestação apenas católica para abarcar todo tipo de fé — e de gente.
Gaby Amarantos na Festa da Chiquita
Reprodução Instagram
Basta circular pelas ruas para constatar que o evento se tornou uma festa da diversidade costurando o sagrado e o profano. Como diz Fafá de Belém, uma das maiores entusiastas (e cicerones) do Círio, “nenhuma explicação sabe explicar, é muito mais que ver um mar de gente”. Só mesmo vivenciando para compreender.
E a experiência confirma a tese de que “a igreja perdeu o Círio”, como resume Gerson Dias. Ele é um dos criadores do Psica de Nazaré, braço do Psica — tradicional festival de música brasileira feita no Norte — dentro do Círio, do qual fazia parte o passeio no tal “barco dos pecados”, que deslizava pelo Rio Guamá ao som do carimbó dos Africanos de Icoaraci.
‘O Círio não tem dono, é do povo’
Irmão e parceiro de Gerson na fundação do Psica, Jeft Dias reforçava a ideia da apropriação do evento pelo povo:
— Com todo respeito à igreja, o Círio não tem dono, é do povo. Pessoas que ficavam às margens, vindas da periferia, do interior, começaram a fazer um Círio paralelo para ganhar protagonismo. Daí que vem o Auto do Círio, a Festa da Chiquita, além das várias experiências das aparelhagens. Porque esse barco em que hoje estamos e as varandas de onde as pessoas assistem ao Círio são lugares de privilégio que sempre foram ocupados por pessoas ricas, brancas, de elite.
É justamente aí que a dupla de jovens agitadores culturais paraenses, pretos e periféricos, e cuja família tem relação profunda com o Círio há gerações, quis mexer com o Psica de Nazaré.
O evento promoveu uma agenda que reafirmou que esta também é uma manifestação cultural construída pelas tradições africanas e indígenas, seja na música ou culinária, puxando aqueles que estão nas bordas e os colocando como protagonistas.
— O Psica de Nazaré veio para dar protagonismo à galera que tinha esses lugares negados. Quisemos trazer nossa visão de inclusão e acessibilidade do Psica para o Círio. A minha avó veio pela primeira vez num barco no Círio Fluvial só no ano passado. Nunca teve essa oportunidade. Ela também pôde ver o Círio de uma varanda — contou Gerson.
Performance “Aparição”, da Festa da Chiquita
Reprodução Instagram
Shows e iguarias
A varanda de que ele fala pertence à Casa Dourada, um casarão de cara para a Igreja da Sé, ponto final da trasladação, procissão noturna que antecede o grande domingo do Círio de Nazaré e entrega Nossa Senhora de Nazaré para passar a noite nessa igreja.
Com nome que remete ao peixe “dourada”, que faz a mais longa migração de água doce do mundo (são mais de 11 mil quilômetros percorridos na imensidão da Amazônia), o imóvel foi reformado e transformado em centro cultural pelo Psica. Agora, fica de legado para a cidade.
Por lá, aconteceram shows da banda Afro Axé Dudu, dos cantores Flor de Murere, Borblue e Iris da Selva, além do almoço das matriarcas. Entre as iguarias, havia a maniçoba da Dona Lurdes, preparada por sete dias por mãos que atravessam três gerações; o tacacá de Dona Flavia, com 35 anos de tradição nas cuias do Centro de Belém; e o vatapá de Mãe Jucy, prato de axé, fé e luta, feito por uma ialorixá que transforma cada panela em altar.
A cantora Liniker estava encantada com tudo que via:
— É bonito quando a cultura de um país se mobiliza para receber a fé, ver essa mistura do Brasil, o que o Norte significa enquanto pluralidade cultural, é muito significativo. Porque não é uma coisa só. Enquanto artista que está sempre ligada em movimentos culturais e sociais, ver o povo se movimentando assim é emocionante para mim.
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