A Morte é a Última Cena
<p>Foi durante um jantar, desses em que o vinho se mistura às confidências e as palavras parecem ter mais alma do que som, que um amigo me disse — com uma serenidade quase desconcertante: “A morte é a última cena.”</p><p>Fiquei em silêncio. Não por falta de resposta, mas porque certas frases parecem exigir pausa, como se precisassem pousar dentro da gente.</p><p>Ele continuou cortando o pão como quem reparte um pensamento antigo: falava sobre o tempo, sobre o desperdício de vida que há em viver correndo. “A gente se ocupa tanto em chegar, que esquece de estar”, disse. E eu, que o ouvia entre goles lentos, entendi que aquela conversa não era sobre morrer, mas sobre o modo como escolhemos existir.</p><p>A morte — pensei — é o último ato, sim. Mas o ensaio começa no instante em que abrimos os olhos pela primeira vez. O palco é o dia, o cenário muda conforme o tempo, e o roteiro... esse ninguém escreve por completo. A vida é feita de improvisos, acasos e reticências.</p><p>Há quem viva como se a eternidade estivesse no bolso, empurrando os encontros para amanhã, os afetos para depois, os gestos simples para nunca. Há também quem transforme cada manhã em uma chance de beleza: um café compartilhado, uma conversa demorada, um olhar que entende sem precisar traduzir.</p><p>Talvez o segredo esteja em reconhecer o paradoxo: viver é caminhar em direção à morte, mas é justamente esse destino inevitável que dá sentido à viagem. A consciência da finitude não deve ser lida como sombra, mas como luz — um lembrete de que o tempo é curto demais para ser gasto com o que não toca a alma.</p><p>Foi esse mesmo amigo quem, anos atrás, havia dito numa cerimônia de despedida de um amigo em comum: “Não morre mal quem vive bem.” Nunca esqueci essa frase.&nbsp;</p><p>E desde então passei a compreender melhor que o sentido da eternidade não está num tempo distante, mas começa aqui — no agora. Nas pequenas coisas, nos gestos que unem, nas convergências silenciosas do cotidiano. A eternidade é tecida no modo como cuidamos dos outros, no amor que deixamos nas palavras e nas presenças que se tornam abrigo.</p><p>Meu amigo sorriu, como se já soubesse que sua frase me acompanharia. E eu percebi que, mais do que uma constatação, “a morte é a última cena” era um convite: o de cuidar da vida com qualidade, de viver encontros verdadeiros, de deixar que o tempo seja espaço de presença, e não apenas de passagem.</p><p>No fim, talvez o grande mistério não esteja em saber quando termina o espetáculo, mas em como escolhemos atuar enquanto o pano ainda está aberto. Porque, se a morte é mesmo a última cena, o que dá sentido à peça — ah, isso — é o modo como a gente vive o intervalo.</p><p>Quando nos despedimos naquela noite, senti que o jantar tinha sido mais do que um encontro de amigos: foi uma pequena lição sobre o essencial. A vida é feita de ensaios, tropeços, gargalhadas, arrependimentos, e uma última cena — inevitável.</p><p><i>Kécio Rabelo – presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira (FMRB).</i></p>
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