
O que leva duas pessoas desconhecidas a viverem uma noite inesquecível?
Dois braços se roçam em meio a um jantar, sem que ninguém em volta perceba. O calor de um corpo e do outro, um acontecimento entre dois silêncios, uma faísca entre dois nadas: promessa de infinito em poucas horas. Posso te dar uma carona?
Dentro do carro, os sussurros substituindo a conversa que se deve evitar sobre parentes, fraturas antigas do coração, se ele passou sempre por média ou se ela quebrou um braço no colégio, dois nomes que não demorarão a ser esquecidos, duas bocas que nunca mais se encontrarão, a improbabilidade tornada real e aliada, dois corpos sem idade, um resto de adolescência se infiltrando na maturidade, dois estranhos olhando-se nos olhos sem se reconhecer, mas confirmando o mistério de estar vivo, um piano tocando em sua cabeça, na cabeça dele talvez uma guitarra, na cabeça do mundo tudo é quietude e sofreguidão.
Um quarto onde os dois são forasteiros, uma cama de lugar nenhum, lençóis que não se sabe quem vai lavar, paredes surdas, mudas, ninguém viu ou verá, ninguém comentará. As roupas no chão serão juntadas, uma a uma, quando terminar, o jeans surrado dele, seu sutiã desbotado, não havia como prever, ambos vestidos para um dia comum, impossível adivinhar.
Os amigos saberão com detalhes ampliados, você audaciosa até o limite, ele destemido até o fim, tudo é mais quente quando imaginado, e a manhã logo virá para apartar, recolocar a vida em seu lugar, você levando os filhos na escola, ele levando o cão no veterinário.
Nem um nem outro planejam uma segunda vez, porque as dores, porque os sonhos, porque a distância, porque os traumas, porque as expectativas que nunca se realizam, guardadas ficarão as poucas palavras e os beijos tantos, o parêntese incendiário entre uma quinta-feira qualquer e uma sexta como as outras, aquele pedaço de existência que nada prometia e fluiu. O tom rouco da voz, os cabelos enroscados nos dedos, a noite que ninguém viu quando caiu, uma cidade onde nenhum dos dois tinha endereço, ninguém onde cair morto, um hotel no alto de um morro, rimando com céu.
E de manhã o estrangeirismo, seu café com açúcar? Um banho rápido, o barulho da água caindo sobre ombros definidos, congratulados, a noite foi de uma elegância ardente, será que ele usará minha escova de dente? Cabelos molhados e minutos finais, toca um jazz suave vindo do quarto ao lado. Ambos precisam retornar, cada um, a seu lugar, foi bom, foi ótimo, minha linda, meu lindo, obrigada, voltaremos a nos encontrar? O sim entre sorrisos fingidos, devolvidos à razão, até o alarme soar, até a bateria acabar, até o avião decolar, sim, claro, te amo, te amo, até nunca mais.
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