
Antitérmico não causa autismo
Nas últimas semanas, uma nova onda de desinformação ganhou o planeta: a teoria de que o uso de paracetamol (ou acetaminofeno) na gestação seria causa de autismo. A ideia, anunciada por Robert F. Kennedy Jr., secretário de Saúde dos EUA, e apoiada por seu presidente, ganhou as manchetes e causou grande rebuliço no mundo.
A ciência segue sendo distorcida em nome da política. Donald Trump e RFK Jr. já haviam atacado vacinas com o mesmo estilo conspiratório: as “elites médicas” e a “Big Pharma” escondem a verdade da população. Uma clássica estratégia dos governos de extrema direita, que costumam fazer uso da saúde para ganhar força e popularidade.
Agora, o alvo é um dos medicamentos mais usados do planeta, com mais de 70 anos de segurança documentada. Um estudo recente publicado na revista Environmental Health encontrou pequenas associações, mas com metodologia frágil — alta heterogeneidade e falhas no controle de fatores como febre e dosagem. Em resumo: nenhuma prova de causalidade. O trabalho mais robusto é sueco. Publicado no respeitado JAMA em 2024, acompanhou 2,48 milhões de crianças e mostrou que não há aumento significativo de risco para autismo, TDAH ou deficiência intelectual.
As principais instituições médicas são categóricas. A Academia Americana de Pediatria, o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas, agências europeias e a Sociedade Brasileira de Pediatria são unânimes em reafirmar a segurança do paracetamol na gravidez, desde que usado de forma racional, na menor dose eficaz e pelo menor tempo necessário.
E note: febre alta durante a gravidez, especialmente no primeiro trimestre, está associada a riscos de 1,5 a 3 vezes maior de defeitos do tubo neural, cardiopatias congênitas e fissuras orais, parto prematuro e baixo peso ao nascer independentemente da causa.
As gestantes americanas têm no paracetamol praticamente a única opção para febres na gravidez, já que a dipirona não é distribuída no país, e o ibuprofeno não é recomendado, por ser um anti-inflamatório não esteroidal (AINE), e apresentar riscos cardíacos e renais para o feto. Que opção resta para essas mulheres? A desinformação as coloca num angustiante beco sem saída.
As causas do aumento de diagnósticos de autismo são múltiplas e complexas. O TEA não tem um marcador detectável num exame. O diagnóstico é clínico, apoiado por escalas e avaliações especializadas. A principal razão é que o reconhecimento do problema cresceu, a conscientização e detecção aumentaram, e rótulos antigos — como “retardado” e outros termos pejorativos e estigmatizantes — foram substituídos por classificações mais humanas e científicas. E há também diagnósticos incorretos ou forçados que inflam os números.
Diversos fatores, sobretudo genéticos e alguns ambientais, são de fato associados ao TEA. Alguns têm evidência mais robusta, como prematuridade, desnutrição intrauterina, diabetes, pré-eclâmpsia e uso de ácido valproico na gestação. Outros vêm sendo investigados, como exposição pré-natal a agrotóxicos, poluição e disruptores endócrinos —substâncias de origem petroquímica e muito presentes em ambientes e objetos usados por humanos.
O autismo é, portanto, um fenômeno complexo, multifatorial, com forte componente genético e prováveis influências ambientais. Reduzir essa complexidade a um medicamento banal como sua “causa” é, no mínimo, uma manipulação cruel.
O paracetamol continua sendo um medicamento seguro e essencial quando usado corretamente. O perigo real está na desinformação — essa sim, epidêmica — que transforma medo em lucro político e financeiro.
A ciência cumpre seu papel: pesquisar, testar hipóteses e esclarecer. Profissionais de saúde devem buscar divulgar as informações corretas. E como sociedade, devemos escolher em quem acreditar: nos cientistas ou nos demagogos.
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