
Intérpretes da carioquice: influenciadores, humoristas, especialistas e acadêmicos tentam explicar o jeito único de ser do Rio
Não se trata de “patrimônio imaterial”. Pomposo demais. É mais uma “parada”, ou, como diziam no tempo em que Don Don jogava no Andaraí: um “borogodó”. Tal e qual os cobiçados cartões-postais da cidade, o jeito de ser do carioca atrai atenções gerais. Tanto que há quem se dedique a interpretá-lo, caprichando nas gírias e no bom humor como bom “local”. De influenciadores digitais a estudiosos, passando até por um “cariocólogo”, muita gente encara o desafio de decifrar nossa alma encantadora e explicar o comportamento de quem é “natural aqui do Rio de Janeiro”, como canta o sambista Zé Kéti no clássico “A voz do morro”.
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A influenciadora Samanta Alves tem origem suburbana como o bamba Zé Kéti. Moradora de Madureira, ficou famosa nas redes sociais ao gravar divertidas esquetes que apresentam o jeitinho de quem cresceu mais perto da beira da linha do trem do que à beira-mar. Nos vídeos, capricha nas roupas, nas gírias, nas dancinhas e no modo de agir (e reagir).
— Ser suburbana é conhecer o Rio além das praias e pontos turísticos. É ser desenrolada, saber driblar as dificuldades sem perder o bom humor e ainda conseguir rir de uma situação caótica — explica ela.
Orgulho suburbano. Nas redes, Samanta Alves veste a camisa da periferia
Ângelo Pontes
Antonio Olavo, também influenciador e namorado de Samanta, é seu antagonista diante das câmeras: representa o “carioca playboy”. Os dois dividem o quadro “Di Cria & Di Playboy”, que ressalta a diversidade mesmo quando todo mundo é “da gema”. Em um vídeo, o casal visita um “podrão”, um ponto de comida de rua. Samanta está em casa, conversa à vontade com o cozinheiro, enquanto Antonio se mantém mais reservado. Os dois se distinguem até na hora de escolher o ponto da carne — ela só diz “daquele jeitinho”, enquanto ele arrisca uma “reação de maillard”, método, digamos, sofisticado, para dourar a carne. Uma coisa os une: ambos estão de chinelo, mas de modelos distintos.
O gaúcho Dirg Verardi e a curitibana Fernanda Fuchs vivem no Rio há pouco mais de cinco anos e são donos da Malhassaum, página virtual em que fazem paródias com estereótipos cariocas.
— Tem o sotaque, a ginga, o improviso e o chinelo. Mas, sendo de fora, noto que o carioca, não importa de onde venha, tem altivez na fala — observa Fernanda, antes de Dig completar: — Carioca gosta mesmo de “resenha” e de samba. Mesmo que diga que não gosta, conhece onde tem e não dispensa.
Dig Verardi e Fernanda Fuchs num botequim na Praia do Flamengo
Guito Moreto / Ag. O Globo
O fotógrafo paulista Ricardo Cyrillo se mudou este ano para o Rio e não demorou a se adaptar. Com imagens de drone, ganhou o prêmio de Influenciador do Rio de Janeiro, concedido pela Secretaria de Turismo do município. Pelo que vê através das lentes, nota classe inigualável no uso do chinelo.
— O carioca sabe fazer o short e o chinelo funcionarem em qualquer situação. Consegue ir ao bar, ao casamento, ao estádio ou à praia assim e sempre parece bem vestido. É uma coisa de doido — analisa.
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A mesma impressão é compartilhada pelo influenciador britânico Nick Whincup, que trocou a cidade de York pelo Rio de Janeiro há quatro anos e ensina o jeito carioca de ser para os gringos.
— Chinelo é quase uniforme — afirma, antes de apontar outros dois pontos marcantes: — As gírias se destacam. Já visitei muitos lugares no Brasil, mas o “tá ligado?” é do Rio. E também tem a camisa de futebol usada no dia a dia.
Análise dos Especialistas
William Vorhees, de 56 anos, se apresenta como “cariocólogo”. Já morou em todas as regiões da cidade e estuda a sério o comportamento de seus conterrâneos há mais de uma década. Segundo ele, o que melhor define o carioca é a capacidade de adaptação.
— Está sempre atento ao que pode acontecer e pensa rápido em como resolver a situação. Ainda se sente à vontade nas ruas do Rio, e não se espanta com gente famosa. No Rio, todo mundo está na rua — resume.
Para Marcus Dezemone, historiador da Uerj e da UFF, a história da cidade é determinante na formação da identidade carioca, e foi moldada desde os tempos de colônia portuguesa.
— O jeito carioca começa quando a cidade vira capital do império. A partir daí, tornou-se referência nos encontros entre diversos povos, culturas e línguas. Desde então, essa “sopa” foi ganhando ingredientes até chegar ao que conhecemos hoje — explica o professor.
Gustavo Pereira, linguista, destaca gírias que são coisas nossas.
— É o caso de “caô” e do vocativo “cara”, que se tornou um pronome de tratamento — explica, ao observar que o estilo de fala único reflete o espírito do carioca: — Demonstra a “carioquice”, que é irreverente, mas reconhece momentos de respeito. Até mesmo quando vai ofender, o carioca começa com “meu
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