Crítica: Encenação da ópera “Macbeth”, por Elisa Ohtake, envolve Verdi em vaias e aplausos
Era para ser um Halloween tranquilo, com apenas alguns assassinatos cometidos no palco do Municipal de São Paulo, numa trama de bruxas e fantasmas que se tornou um marco na obra de William Shakespeare. Quando a soprano kosovar-croata Marigona Qerkezi deixou o palco na última sexta (31), após cantar a ária de Lady Macbeth, ainda no primeiro ato, uma câmera a acompanhava pelos corredores do teatro até o camarim. Projetada no telão, a imagem da cantora lendo trechos de Macbeth, com uma garrafa de Catuaba Selvagem intencionalmente visível, servia para cobrir a troca de cenas. Foi também o gatilho para o início de protestos e vaias vindos de alguns pontos do Theatro Municipal de São Paulo.
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“Vergogna”, gritou alguém com sotaque italiano audível. “Respeitem Verdi”, ouviu-se do camarote em que estava o vereador Adrilles Jorge. A questão política envolvendo a gestão da organização social Sustenidos — ameaçada de ter o contrato rompido pela prefeitura — também emergiu quando alguém gritou “Fora, Sustenidos!”. “Isso é uma merda!”, berrou uma mulher na repetição do recurso, quando o baixo-barítono Craig Colclough (Macbeth) foi filmado comprando pipoca e comendo na entrada do Municipal. Tudo isso foi acompanhado por gritos de defesa e pedidos de silêncio, que acabaram, na percepção geral, abafando os poucos manifestantes mais ruidosos. A rigor, depois do único intervalo de uma produção de quase três horas, só houve vaia quando a diretora cênica Elisa Ohtake surgiu para os aplausos finais.
“A vaia é um direito que se compra com o ingresso”, dizia o dramaturgo francês Nicolas Boileau (1636–1711) — uma verdade difícil de digerir num ambiente cultural como o brasileiro, obcecado por consensos. Negar ao público o direito à vaia é exigir que o teatro lírico seja a igreja que ele não é. E cada vez mais é essencial que os teatros assumam riscos, como lembrou Alexander Neef, diretor da Opéra de Paris, em entrevista ao GLOBO neste mês.
É preciso distinguir o que é estético daquilo que nasce de um movimento político conservador que vê nos Sustenidos uma condução “woke” do principal teatro de ópera do país — o que mais tem verba e repercussão, depois de O Guarani (2023), concebido por Ailton Krenak. Neste artigo, o julgamento que se propõe é estético.
Musicalmente, não há reparos graves. A Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, regida por Roberto Minczuk, apresentou um Verdi idiomático, com ótimos andamentos, solos cristalinos nas madeiras e excelente equilíbrio com as vozes. O Coro Lírico Municipal demonstrou nova maturidade, numa apresentação praticamente sem arestas. Verdi oferece momentos marciais que costumam “empolgar” demais os coros brasileiros, mas aqui não houve excessos. A musicalidade refinada bastou para que nenhuma vaia se ouvisse durante a execução.
Encenação da ópera “Macbeth”, por Elisa Ohtake
Rafael Salvador/Theatro Municipal de São Paulo
Os solistas tiveram uma noite de relativo brilho. Marigona Qerkezi, que se reapresentava em São Paulo após Nabucco (2024), exibiu agudos de excelente emissão e uma teatralidade bem-vinda. Se no registro grave sua voz perde volume, compensa com eletricidade e presença, tanto em árias como “La luce langue” quanto no sexteto do primeiro ato. Já o Macbeth do americano Craig Colclough alternou momentos de timbre verdiano bem posicionado com outros de emissão opaca, o que lhe trouxe dificuldades no clímax da cena de loucura durante o banquete. Sávio Sperandio (Banquo) e Giovanni Tristacci (Macduff) tiveram ótimas participações.
A encenação e seus limites
Foi na condução do conto de terror que a direção de Elisa Ohtake — também responsável pela cenografia — encontrou limitações. Com vasta experiência em dança e teatro contemporâneo, Ohtake propôs uma imersão no abismo e na escuridão de Macbeth, em que a ambição desmedida do casal pelo trono da Escócia os conduz a uma sucessão de assassinatos. O cenário, essencialmente sombrio e vazio, segue a estética do teatro contemporâneo: a representação de uma justiça cósmica se dá por grandes paredes metálicas e tetos que parecem desabar sobre os cantores, em movimentos graduais — como a tampa de um laptop se fechando. Há um escorpião e uma cobra cênicos, e, por vezes, poltronas infláveis transparentes. Soma-se a isso o recurso, quase onipresente nas produções recentes, de inundar o palco com projeções filmadas por câmera na mão (com o cinegrafista por vezes visível).
Além dessa feiura quase objetiva, o maior equívoco talvez tenha sido o de transformar o momento em que Qerkezi lê um trecho do Macbeth de Shakespeare — ausente no libreto de Francesco Piave — numa espécie de palestra ilustrativa. É didático demais interromper a ópera para ler um texto que a própria diretora reproduz no programa. Essa falta de confiança no público soa, de certo modo, condescendente.
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