Contra a ditadura do colágeno: manifesto de uma pele cansada
Daqui, de onde obnubiladamente me vejo, contemplo com satisfação a existência de pessoas que definitivamente sabem elogiar. Elogios sinceros me interessam. Aqueles que não estão atrelados à obtenção de vantagens imediatas sejam elas de que natureza for.É possível destacar de maneira positiva as qualidades multidimensionais de qualquer pessoa que admiramos. O brilho dos olhos, o gosto musical, a modulação agradável da voz. A beleza reside onde queremos estar, alongar os instantes, lançar âncoras de permanência. Toda malícia, toda delícia, todo mistério.
Quero morar no tom mostarda do meu vestido. Ele anda cansado de ser exibido por aí, mas acede ao meu desejo de colocar à vista a magnitude do contraste com o meu epitélio marrom. Sua textura, assim como as partituras da minha tez, denunciam a datação de carbono. Está todo cheio de bolinhas ásperas, semelhantes às minhas brotoejas. Envelheceu de mãos dadas comigo. Somos vintage. Ele tem a vantagem do recorte nostálgico. Quanto a mim, posso me reinventar com novos cílios, unhas postiças e um novo cabelo.
Enquanto atiço sensibilidades, ele sustenta olhares para além de mim. Indefectível modelagem do belo. Um tecido aveludado aformoseia o corpo, ainda que seu drapeado simule uma dobra adiposa de nostalgia. Nenhuma costureira o soube replicar. Nesse sentido, somos peça única, de assinatura exclusiva. Um tanto deprimente para um tecido que poderia ser social.Há tantas versões de mim quanto possível. Havia um vestido balonê que me causava certo torpor por sua topografia bufante. Retroativamente, percebo que nos anos oitenta utilizei adornos de gosto duvidoso. Ombreiras excessivamente marcadas, corte de cabelo que não me favorecia. Ainda assim, ao olhar dos amores de ocasião, seguia o caminho de jovem desejável.
Desconfio que seja a juventude o objeto visado. Tão logo cruzamos o limite dos 50, os elogios mudam de tom. O que pode ser libertador, considerando que os hormônios encontram o caminho da pacificação. O sono é sagrado e os programas noturnos são esporádicos e planejados. O sono da beleza é indispensável para uma performance social satisfatória. O teatro reina. A poesia impera. O streaming salva vidas.
Os senhores descobrem a cor que azuleja o dia. As senhoras experimentam o vigor da musculação, reforçam a musculatura pélvica, cultuam a reposição. Muitos desencontros no caminho. A vida segue cheia de surpresas.A mais recente no campo da sexualidade não foi a aquisição de um brinquedo sexual, mas a sorte do encontro com Leo Grande. Um salto triplo mortal e somos o ente que espia a intimidade de uma senhora elegante diante de sua escolha pelo circuito do prazer. Uma escolha repleta de angústia neurótica e protelatória. Por muitas vezes me angustiei por Emma Thompson. Não bastasse sua purgação em razão e sensibilidade, seria preciso protelar um tanto mais até que ela pudesse desfrutar daquilo a que se propôs.
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