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Quando a cidade sangra: ser cria da Penha em meio à maior chacina do Rio

09/11/2025 09:01 O Globo - Rio/Política RJ

Há dias não consigo parar de pensar na chacina que deixou 121 mortos no Rio, entre elas quatro policiais, e trouxe ainda mais trauma para a cidade que tem na violência uma das tantas consequências de desigualdades históricas.
É o tipo de acontecimento que tira o sono, a esperança e a fé em que as coisas possam mudar. Falo aqui não como especialista em segurança pública, nem como quem observa de fora. Falo como cria da Penha, alguém que cresceu no coração de onde a operação aconteceu, com irmãos, amigos e parentes que ainda vivem lá, enfrentando o medo diário de sair para trabalhar sem saber se voltam.
Há vários “Rios” num só e isso não é de hoje. É difícil descrever a sensação de ver esse lugar transformado em manchete de guerra. As imagens de confronto no Complexo, o som das balas, o comércio fechado, as escolas sem aulas — tudo isso atravessa quem tem memória afetiva daquele território.
Cada esquina tem história. Cada viela tem rosto. E, de repente, tudo é reduzido a uma estatística: dezenas de mortos. Mas o que essa operação resolveu, de fato, além de espalhar dor e medo?
No país que se diz cristão, onde oficialmente somos contra a pena de morte, aprendemos desde cedo o lema “bandido bom é bandido morto”. Só que essa sentença tem cor e CEP. É fácil perceber quem é o alvo quando se vê que, majoritariamente, as vítimas são pessoas negras, pobres, periféricas. E, mais uma vez, a morte vira espetáculo, moeda política, forma de demonstrar “autoridade” num ano pré-eleitoral.
O que me inquieta é perceber o quanto normalizamos o absurdo. Nos acostumamos a acordar com notícias de chacinas, sentir medo e seguir o dia como se fosse mais uma terça-feira. Mas não é normal. Não pode ser. Cada corpo caído carrega um mundo interrompido. E cada vida interrompida deixa um buraco na nossa humanidade coletiva.
O problema é que a violência virou cortina de fumaça para esconder o que realmente deveria ser combatido: a desigualdade racial, a exclusão social e a falta de investimento em educação e oportunidades. Exemplos de soluções concretas não faltam. Medellín, na Colômbia, e outros vizinhos conseguiram, entre lutas e conquistas, avançar.
Mas, enquanto o nosso poder público só apostar na bala, vai faltar escola, cultura, emprego e políticas públicas que acolham. O resultado será sempre um ciclo que se repete — e cada vez mais sangrento.
Sei que corro o risco de ouvir aquela velha frase: “Está passando a mão na cabeça de bandido”. Mas defender o direito à vida não é defender o crime. É defender a humanidade. Até porque, para além das pessoas mortas, pouco se pensa nas crianças que assistiram aquilo. O que se tornarão?
Desejo consolo às famílias, força aos moradores que vivem o cotidiano de guerra e ainda assim encontram um jeito para sorrir, abrir o bar, ir à igreja, cuidar dos filhos, acreditar que o amanhã pode ser diferente. O sonho também é resistência.
Foi assim que nossos ancestrais chegaram até aqui. Se hoje existimos, é porque alguém acreditou que a vida valia mais do que a morte. É esse sonho que me move: o de ver um dia a normalidade ser o direito de viver em paz, de ver a Penha e as diversas faces do Rio vibrarem de vida, não de sirene.
Porque ser cria da Penha é isso: carregar no peito o desejo de um Rio que abrace, não que fira. Que proteja, não que elimine. Que aprenda, finalmente, que justiça não se faz com sangue, mas com igualdade.

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