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O Rio é só a chaga mais visível de um corpo apodrecido

29/10/2025 15:05 O Globo - Rio/Política RJ

No começo do ano passado, quando Mamãe esteve doente, fiquei indo e vindo do Hospital Silvestre -- um recanto em tese idílico, em plena Mata Atlântica, numa encosta de morro entre o Parque Nacional da Tijuca e o Corcovado. Era uma beleza em 1950, quando o hospital foi construído; hoje é sobretudo um problema. Apesar da ocupação desordenada, a montanha continua linda. Parte da floresta sobrevive, muita vista, muito verde, passarinhos, pacote completo; mas torça para subir pela ladeira certa.
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No dia em que o Uber errou o caminho, a menos de cinco minutos daquela cabine da PM que fica na saída do Rebouças, fomos parados por um grupo de homens armados com fuzis.
-- Está indo ao hospital, tia? Pode seguir.
Eles só queriam ver quem estava no carro. Podíamos seguir. Podiam ter levado os meus documentos e o celular, podiam ter roubado o carro, podiam ter ficado nervosos e disparado, podiam ter começado um tiroteio com a polícia ou com outros caras igualmente armados, podiam qualquer coisa, vai saber. Podiam. Eles, não nós; nós não podemos nada. O verbo não é nosso.
Nos dias seguintes prestei atenção ao trajeto para não cair na boca novamente. As pessoas que vivem na comunidade não tiveram essa opção. Continuam lá dia e noite, reféns de uma situação de alto risco que não devia, não podia, acontecer. E que se repete em todos os morros, em todas as planícies, em todas as comunidades das quais o Estado abriu mão.
Um Estado que permite que bandidos decidam quem pode ou não pode passar pela rua faliu em todos os sentidos.
As facções dominam o que nós, como sociedade, desistimos de dominar.
Há décadas convivemos com isso. Conhecemos pessoas que não podem sair de casa ou não podem voltar, que vivem à sombra do crime, angustiadas com as circunstâncias, aflitas com o destino de filhos e netos, impotentes diante da violência. Dos traficantes, das milícias, da polícia.
Imagino a única pessoa que não se vê naquele vídeo em que mais de vinte caras se entregam (“sem esculacho”, “tem um amigo morto no chão”, “bagulho é tranquilidade”): a tia que filma, a dona da casa.
Imaginem: a dona da casa. Uma casa. A casa dela. Invadida pela guerra, um arsenal espalhado, um morto no chão, manchas de sangue na parede. Em casa; naquele território chamado lar, que deveria ser sagrado.
Como se resolve essa tragédia?
Cláudio Castro no governo é uma piada sinistra, um deboche de mau gosto. Mas não só: Marcelo Alencar, Anthony Garotinho, Rosinha Garotinho, Sérgio Cabral, Pezão, Wilson Witzel.
Isso não é lista de nomes, isso é maldição.
A desgraça, porém, vai além do Rio. Enquanto o Brasil não entender o tamanho do problema, e não enfrentá-lo socialmente, vamos continuar enxugando gelo, matando gente e nos horrorizando com as notícias -- até a próxima mortandade.
Ou a segurança pública supera a ideologia e vira projeto de país, ou vamos todos para o brejo.
O Rio é só a chaga mais visível de um corpo apodrecido.

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