Lô Borges: como uma fã médica virou parceira profissional de seu ídolo
Nascida em Brasília de pais mineiros, Manuela Costa estava em Belo Horizonte, em 2005, aos 21 anos, quando foi ao cruzamento das ruas Divinópolis e Paraisópolis, o ponto que inspirou o nome Clube da Esquina. Fez mais: foi ao apartamento da família Borges, ali perto, e Lô, um dos líderes do clube que mudou a música brasileira com o disco homônimo de 1972, estava lá. Aquela jovem é agora, aos 41, parceira de seu ídolo num álbum dele, “Tobogã”, lançado no ano passado e seu sexto álbum de inéditas em seis anos. Lô Borges, um dos fundadores do histórico Clube da Esquina e referência da MPB, morreu na noite deste domingo (2), aos 73 anos.
Nos últimos anos, a médica Manuela vinha mandando mensagens para Lô (ou Salomão Borges Filho) com poemas. A amizade virtual se transformou num vínculo profissional.
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— Ela me mandava poemas por e-mail e WhatsApp. Propus: “Vamos inverter o processo.” Passei a mandar melodias — contou Lô, por telefone, de Belo Horizonte, no ano passado. — Das 12 faixas do disco, ela escreveu oito letras para as minhas músicas e em quatro foi o contrário. Para uma letrista estreante, ela mandou muito bem. Minha aposta foi acertada.
'Tobogã', novo disco de Lô Borges
Divulgação
A primeira da dupla foi “Pouso da manhã”, gravada com participação da própria Manuela — a outra convidada do álbum é Fernanda Takai, na faixa-título e em “Amor real”. Embora nunca tivesse feito antes letras para melodias, ela disse que teve a tarefa facilitada pela forma com que Lô mandava os áudios, deixando muito claros o número de sílabas e a acentuação.
— Eu brincava que ele compunha em “marcianês”, na língua de Marte, e que eu era apenas uma tradutora — disse Manuela. — Acredito que as traduções tenham sido fiéis, porque, como fã, eu coloquei nelas todo o meu amor, o meu respeito e a minha gratidão pela obra dele.
O álbum "Tobogã", foi lançado no ano passado, quando Lô Borges estava com 72 anos de idade e 52 de carreira. Com o mesmo nome do livro de memórias de seu pai, foi o sexto álbum de inéditas nos últimos seis anos.
— Não sei o que acontece comigo. De 2003 para cá, minha produção é o dobro do que fiz no século XX. Aumentou especialmente a partir de 2019. Acho que as músicas vêm do céu, mas é preciso buscar. Elas não vão cair na sua cabeça. É um esforço físico e intelectual — afirmou o cantor. — Se Neil Young, que é um dos meus ídolos, faz dois ou três discos num ano, dizem que ele é muito produtivo. Como sou brasileiro... “ih, lá vem aquele chato!”.
'Para Lennon e McCartney'
A fase intensa começou com “Rio da lua” (2019), de parcerias com Nelson Angelo. No ano seguinte, “Dínamo”, feito com Makely Ka. Na pandemia, a produtividade aumentou.
— Não ia ser negacionista e sair por aí. Fiquei em casa compondo o tempo todo — recordou ano passado.
Lô contou que tinha mais álbuns de inéditas alinhavados, como “A estrada”, só de letras com seu irmão e parceiro mais constante, Márcio Borges — ele tinha mais nove irmãos. E são repertórios de dez, 12 canções, como se fazia antes das plataformas de áudio, quando se tornou comum lançar músicas separadamente.
— Cresci ouvindo discos inteiros, é a minha formação. E perdi a manha de fazer uma só. Falo com o parceiro: “Bora fazer mais nove” — explicou.
O ponto de partida da carreira de Lô é “Para Lennon e McCartney”, composta com Márcio e com Fernando Brant e lançada por Milton Nascimento em 1970. Dois anos depois, ele, com apenas 20, virou o segundo nome mais importante do álbum duplo “Clube da Esquina” por decisão de Milton.
— Eu não era conhecido nem em Belo Horizonte. Ficava naquela esquina tocando Chico Buarque e Beatles. Milton me levou da esquina para o estúdio — lembrou Lô, grato ao amigo. — Devo muito ao Milton. O aprendizado com a musicalidade, com a generosidade dele. É um cara muito especial, um irmão. Era o 12º irmão Borges.
Disco hermético
Ao ouvir composições presentes no “Clube da Esquina” como “Um girassol da cor do seu cabelo”, “Tudo que você podia ser”, “O trem azul” e “Paisagem da janela”, a gravadora Odeon reconheceu que o jovem tinha talento e lhe encomendou um disco solo para aquele mesmo 1972.
— Eu não tinha música, tinha gastado toda a minha produção de iniciante no “Clube” — contou ele. — Por irresponsabilidade, me senti desafiado. Eles esperavam canções solares e eu fiz um disco hermético, psicodélico, alternativo, lado B.
O LP ficou conhecido como “o disco do tênis”, por causa da foto de um tênis na capa. Apenas na década passada Lô fez shows com o repertório do álbum cultuado.
Além da velocidade com que compôs as músicas, há outro ponto que aproxima o disco de 1972 de “Tobogã”: o autor da foto da capa é o mesmo, Carlos da Silva Assunção Filho, o Cafi (1950-2019), também autor da imagem icônica de “Clube da Esquina”, com um menino negro ao lado de um menino branco. A foto
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