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Rosalía canta a dor do mundo em 'Berghain' e redefine o pop como oração moderna

09/11/2025 08:30 O Globo - Rio/Política RJ

Rosalía tem 33 anos, mas canta como se tivesse vivido mil. Em seu novo single, “Berghain”, há algo de epifania e ironia bem planejada. O título remete ao nome da boate mais exclusiva de Berlim, templo da música eletrônica onde quase ninguém consegue entrar: o porteiro é uma lenda e a fila, um ritual de humilhação. Não adianta ser bonito, rico ou cool. Às vezes, só tem o passe liberado quem parece não pertencer.
Já na Berghain de Rosalía, todos são convidados — mas quem realmente deseja entrar? Trata-se de uma música que abre as portas de um ritmo cada vez menos em voga na indústria musical algorítmica, embora carregue aquilo que há de mais humano: a emoção, verdadeiro clássico universal.
Ao invés de servir batidas previsíveis, a cantora espanhola faz o que poucos ousariam no pop contemporâneo e entrega uma orquestra monumental, dirigida pela London Symphony Orchestra. Os coros e arranjos ecoam em alemão, espanhol e inglês, com a participação de Björk e Yves Tumor, radicalizando ainda mais o experimento. Rosalía conta que aprendeu cada idioma para senti-lo por dentro, para entender como a língua desenha o sentimento de quem a fala. O resultado é uma bela experiência de alteridade, em que habitar a música do outro também é esforço para compreender a própria humanidade.
“Berghain” explodiu nas plataformas, chegou ao top 10 global do Spotify, viralizou no TikTok e inspirou jovens a procurar aulas de instrumento. A música clássica virou vibração coletiva e desejo de pertencimento. O videoclipe é pura alegoria hipnótica: Rosalía vive a rotina — café, consulta, roupas passadas — enquanto a orquestra a persegue como pensamento fixo, um coro interior, um drama que invade o cotidiano. O contraste entre a doçura fabricada do mundo e o sublime do arranjo evoca “Carmina Burana”, o sagrado cruzando a banalidade. “O medo dele é o meu, o sangue dele é o meu sangue”, canta o coro.
Do lado de cá, vivemos nossa Berghain invertida. Uma cidade sitiada, onde o barulho das sirenes e dos fuzis atravessam as janelas como um réquiem urbano. Mortes, explosões, famílias em pânico. Policiais que saem de casa sem saber se voltam. É claro que raras são as guerras vencidas sem derramamento de sangue, mas a dor não é real apenas quando nos pertence. Nos embates travados nas redes sociais, dos respectivos sofás de seus postadores, a impressão que fica é que a sociedade parece ter desaprendido o idioma da empatia, cada lado lutando apenas por estar “certo”. Enquanto isso, há décadas, o Estado repete os mesmíssimos erros esperando alcançar resultados diferentes.
E é por isso que Berghain tem atravessado tanta gente, de tantas nacionalidades. Canta que o medo do outro é o meu medo, que a vida do outro me diz respeito. Que a guerra — em Gaza, na Ucrânia ou na Penha — é a mesma tragédia, só que com sotaques diferentes. E que, por mais que tentemos fugir para uma realidade açucarada, há uma orquestra nos chamando para acordar.
Vivemos a era das traduções instantâneas, dos fones que prometem o fim da Torre de Babel. No entanto, mesmo o mais avançado dos algoritmos jamais dirá aquilo que foi dito. Entre o som e o sentido, há um deserto que só o humano atravessa.
Do seu jeito, Rosalía devolve essa escuta e mostra que, por mais perdidos, seguimos desejando nos entender. Que a música, esse idioma ancestral, ainda une quando todas as outras palavras falham. Sua Berghain não rejeita ninguém, mas repõe o espanto — e por isso é um sucesso inesperado. Traz o gesto mais radical da era digital e de que mais necessitam as tais personalidades da internet: tentar sentir o que o outro sente.

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