Dos 117 mortos em megaoperação na Penha e no Alemão, 26 tiveram passagens pela justiça quando menores
Entre as fotografias dos suspeitos mortos na operação policial da semana passada nos complexos do Alemão e da Penha, pelo menos duas chamam muito a atenção: são de adolescentes, um de 14 e outro de 17 anos. Ambos já tinham sido alvos de investigação pelo suposto cometimento de infrações. Levantamento feito pela Vara da Infância e da Juventude do Rio mostra que, dos 53 suspeitos que eram do Rio na lista de 117 vítimas, 26 já tinham sido apreendidos pela polícia quando menores, passaram pelo sistema socioeducativo, foram liberados e reintegrados — não à sociedade como seria de se esperar, mas ao crime.
“Eles receberam medidas socioeducativas que não fizeram nenhum efeito na vida deles. Porque o sistema socioeducativo do Rio está completamente abandonado pelo Poder Executivo há muitos anos”, disse a juíza Vanessa Cavalieri, responsável há dez anos pela Vara da Infância e da Juventude do Rio, em vídeo publicado esta semana nas redes sociais.
Juíza Vanessa Cavalieri, responsável há dez anos pela Vara da Infância e da Juventude do Rio
O GLOBO
Além dos que morreram, há ainda dez menores que foram presos na operação. Na visão da juíza Cavalieri, o debate sobre a raiz do problema tem sido relegado a segundo plano: “Ninguém nasce traficante. As pessoas tornam-se criminosos ao longo da vida por várias circunstâncias que vão acontecendo. E raramente o primeiro envolvimento de um indivíduo no crime é depois que ele faz 18 anos, depois que ele se torna adulto. Na maioria das vezes, o início da trajetória no crime é ainda na adolescência, no início da adolescência”, disse a magistrada.
‘Ele vai lá assinar um papel’
Quando um menor se envolve em alguma atividade criminosa e é apreendido pela polícia, passa pela Vara da Infância e da Juventude. A partir daí, a lei permite que receba uma medida que varia de acordo com a gravidade do delito: internação, semiliberdade, liberdade assistida ou prestação de serviços. As duas primeiras, mais graves, ficam sob a responsabilidade do governo do estado, por meio do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase). Já as outras, mais leves, vão para as prefeituras, conduzidas nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas) que devem acompanhar os adolescentes e suas famílias.
Corpos colocados em praça na Penha após operação policial no Rio: mortes não foram contabilizadas pelas autoridades
Fabiano Rocha / Agência O Globo
No entanto, segundo a magistrada, não é isso que tem sido observado nos últimos anos: “Ele, na prática, vai lá assinar um papel. É o que eles dizem pra gente: ‘Eu tava assinando um papel’. Porque a gente não tem um programa sério no Rio de liberdade assistida há décadas”, critica Vanessa Cavalieri.
A Secretaria municipal de Assistência Social (Seas) informa que acompanha por mês 640 adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de meio aberto, como liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade em 14 Creas na cidade, e que o índice de reincidência observado é inferior a 3%.
— Retomamos o programa Passo a Passo, que foi descontinuado em 2017 e estamos investindo R$ 1,5 milhão nele. Era um projeto, hoje é um programa. Estava em três Creas e hoje está nos 14 da rede. Com todo o respeito à juíza, o que ela descreveu realmente aconteceu, mas era uma realidade de um programa interrompido. Hoje é diferente — disse a secretária de assistência social da prefeitura, delegada Martha Rocha. — Eu acho que é importante que ela venha conhecer as oficinas de música, de produção audiovisual, técnicas, e todo o acompanhamento que está sendo feito.
Em nota, o Degase informa que tem 921 vagas no sistema e acompanha atualmente 756 adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas nas 24 unidades no estado. Entre janeiro e outubro deste ano, a taxa de reincidência observada foi de 42%.
Manifestantes protestam contra a violência policial de megaoperação nos Complexos do Alemão e da Penha
Marcelo Theobald/ Agência O Globo
O departamento informou ainda que as unidades contam com “escolas da rede estadual e atendimento multidisciplinar, com psicólogos, assistentes sociais, pedagogos e profissionais de saúde”. Ainda segundo o o Degase, os menores participam de atividades culturais, esportivas e cursos profissionalizantes e contam com projetos de inserção no mercado de trabalho, como o Justiça pelos Jovens, em parceria com o TJRJ.
— A primeira coisa que precisa mudar é a consciência de que a solução do problema não está em devolver o mal praticado, mas sim em socializar, em incluir aquela pessoa para que ela mesmo desenvolva o interesse de ser produtiva para a sociedade — disse Rodrigo Terra, procurador de Justiça do Rio.
Para o psicanalista e professor Gustavo Coelho, da Faculdade de Educação da Uerj, que há seis anos atua em unidades de internação do Degase, o ingresso de adolescentes no crime não acontece à margem do estado. O pesquisador descreve o que chama de “inclusão forçada”: o jovem é empurrado para o tráfico porque ali encontra pertencimento
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