O que o filme 'Caramelo', da Netflix, e Jane Goodall, falecida no mês passado, têm em comum
O sucesso mundial de “Caramelo” talvez diga mais sobre nós do que sobre o próprio filme. Um cachorro brasileiro, um vira-lata de rua com orelhas irregulares e olhar doce, tornou-se o protagonista do título nacional de maior alcance global da Netflix. O longa segue entre os mais vistos do planeta, com milhões de espectadores em noventa países.
A história é direta. Um chef, interpretado por Rafael Vitti, tem sua vida interrompida por uma doença e encontra no cachorro resgatado uma forma de seguir adiante. “Caramelo”, portanto, não pretende inovar, e talvez aí resida seu sucesso: no cansaço das tramas cínicas, na vontade coletiva de reencontrar algo puro. Sim, ainda há espaço para histórias simples sobre vínculo e cuidado.
Enquanto o público se emocionava com o cachorro brasileiro, o mundo se despedia de Jane Goodall, a mulher que ensinou a Humanidade a se olhar pelo espelho dos animais. Morta aos 91 anos, ela deixa um legado que atravessa a biologia, a ética e a própria ideia de civilização.
Nascida em 1934, em Bournemouth, Inglaterra, Jane cresceu numa casa modesta, com o ouvido atento aos sons da natureza e o olhar voltado para longe. Lia Tarzan, Mogli e Dr. Dolittle, imaginando a África como destino e vocação. Sem formação acadêmica formal, foi autodidata e obstinada. Em 1960, aos 26 anos, chegou à Tanzânia a convite do paleontólogo Louis Leakey para estudar chimpanzés no Parque Nacional de Gombe.
O que se seguiu foi uma revolução. Jane dispensou o distanciamento científico, deu nome aos chimpanzés, aprendeu seus gestos e sons, e registrou o que ninguém antes vira: que eles fabricavam ferramentas, formavam alianças, expressavam luto, empatia e alegria, e até organizavam-se para a guerra de maneira bem violenta. Suas anotações derrubaram fronteiras entre o humano e o animal. “Com 98,8% do DNA compartilhado, como pudemos acreditar que estávamos em margens opostas?”, ela perguntava.
Ao reconhecer personalidades em cada chimpanzé, Jane transformou o estudo da natureza em uma ética, derrubando o mito da fronteira absoluta entre o homem e o animal. Fundou o Instituto Jane Goodall e o programa Roots & Shoots, presente em mais de cem países, para ensinar jovens a agir em defesa dos bichos e do planeta. Tornou-se Mensageira da Paz da ONU, defendeu a preservação das florestas e o fim do tráfico de espécies ameaçadas. Até o fim, viajava incansavelmente, pregando o respeito à vida como única forma de progresso possível.
Nesta semana em que o Rio recebe o Earthzone, evento dedicado à sustentabilidade e ao futuro da Terra, impossível não evocar a morte recente de Jane. Ela não falava de ecologia em slogans; viveu o que pregava. Acreditava que a compaixão não era atributo moral, mas ferramenta evolutiva. Dizia que ainda acreditava na juventude e nos animais, porque via neles uma força que resiste à brutalidade do mundo. Talvez por isso, ver o planeta inteiro se emocionando com um vira-lata brasileiro, que nos ensina sobre lealdade, entrega e dignidade, seja uma grande notícia.
No fundo, o que Caramelo revela pela emoção, Jane traduziu pela razão. Ambos devolvem o animal ao centro da experiência humana. O cachorro que acompanha um homem doente e a cientista que observa primatas por décadas falam da mesma urgência: a de pertencer, conviver, reconhecer o outro, renunciar à velha soberba de nos imaginarmos senhores absolutos de um mundo em que o resto da vida seria só cenário servil e acessório.
Se há esperança, ela late, balança o rabo e, com sorte, responde ao nosso chamado. Quem tem essa sorte sabe do que eu estou falando.
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