Copo americano? Copo Lagoinha!, um símbolo de consenso afetivo
Nós já falamos por aqui da bebida, do dono, do garçom e até da espuma do chope. Faltava falar dele: o intermediário silencioso entre o servir e o tomar. Porque quando se pede “um copinho pra cerveja gelada”, o país inteiro imagina exatamente aquele: baixotinho, de vidro grosso, doze frisos que moldam a luz e que cabe na mão com precisão. Não é só um copo: em 9cm de altura e 6,5cm de diâmetro, ele é o atalho imagético para a mesa de bar.
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E nessa mesa o país pode rachar em política, religião e futebol — mas diante dele, que não quebra fácil, o Brasil entra em acordo. Um objeto que virou o umbigo emocional da nação, um símbolo de consenso afetivo. É o design perfeito e premiado para domar uma bebida que parecia indosável: 190ml que parecem feitos sob medida. Nem muito pra esquentar, nem pouco pra virar sem pensar.
O copo que o brasileiro aprende a segurar antes de saber beber. E talvez por isso seja tão grave o fato de que até hoje a gente insiste em chamá-lo pelo nome errado.
O copo americano, quer dizer, Lagoinha
Reprodução
De férias, passei os últimos dias em Belo Horizonte. Além de rever os amigos e comer iguarias recomendáveis — o jiló recheado da Porca Voadora, a coxinha carnuda do Bar da Lili —, bebi muita cerveja na medida certa... e no copo Lagoinha. Em BH, é assim que ele se chama, e a diferença não é detalhe. Este colunista mineiro, assumidamente, tem lado: o que quer que o país inteiro deixe de lado o “copo americano” e adote o nome belo-horizontino. Não é bairrismo: é que vem da Lagoinha a história que honra o copo do seu cafezinho de hoje, ou da sua cerveja de amanhã.
Se o leitor ainda chama esse símbolo nacional de “americano” achando que ele nasceu lá fora, eu lhe conto: a verdade desce mais redonda. Ele é brasileiríssimo — e sua inspiração estética até era soviética. Criado em 1947 pela fábrica Nadir Figueiredo, o copo só ganhou essa alcunha porque a máquina que o produzia era importada dos EUA. Convenhamos: é um batismo burocrático, sem alma. E este copo é o oposto disso. É tão icônico que, em 2009, virou representante oficial do design brasileiro no MoMA, em Nova York. Ou seja: nada americano, e sim cultura material brasileira elevada à condição de arte.
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Foi em BH que ele ganhou o nome de afeto. Tudo aconteceu na Lagoinha, bairro boêmio da capital mineira, por volta dos anos 50, no comércio da família Vaz de Mello, o Armazém do Quim Quim. Joaquim, o tal Quim Quim, foi quem batizou o copo batendo-o nas mesas, balcões e paredes, para mostrar que era difícil de quebrar: “é o copo Lagoinha!”. E foi ali, num pedaço cheio de botequim e prosa boa da cidade, berço do improviso, do país real que acorda cedo e fecha a conta no fim do mês, que esse objeto virou patrimônio afetivo. Esse nome não veio do cadastro ou do manual técnico da indústria — veio da fala, da piada, da venda, da vida. E é por isso que deveria ser padrão nacional: porque conta melhor a história do próprio Brasil e dá crédito a um bairro popular, que criou, sem querer, um ícone tropical.
E se é verdade que toda grande história brasileira deva passar pelo Rio para ganhar o carimbo definitivo — está aqui o convite. Que o carioca que bebe na Lapa, que brinda na Tijuca, que se espraia nas mesas de Copacabana e que samba em Madureira faça esse gesto simples e histórico: honrar o copo pelo nome que veio do povo. Porque se tem algo que o Rio faz bem é pegar o que nasce genuíno no Brasil e transformar em linguagem comum. Que a revolução comece assim: da próxima vez que você pedir uma cerveja, já conte essa história, e peça no Lagoinha.
E pronto. É assim que um país começa a corrigir a própria história — num gole curto, preciso e baixotinho. Na medida certa.
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